sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Nós, os contemporâneos




(...)

Nós somos o sujeito contemporâneo, um guerreiro forte e vulnerável: exposto a mil receitas loucas e modelos insensatos, do acordar até o adormecer. Mas também criativos, generosos, brilhantes.

Somos a geração medicada, que toma remédios para controlar o funcionamento de um organismo que desandou por muitas pressões, ou ao qual muitas vezes se nega seu próprio funcionamento, porque o temos de enquadrar segundo critérios não naturais para aquele indivíduo (...)

Rostos inexpressivos por excesso de intervenções estéticas, torturas físicas na procura de um ideal impossível, e o desejo irreal de uma subtração do tempo. (...) Talvez a gente precise refletir sobre ser mais natural. Pois embora se apregoe uma volta à natureza, também em alimentação e modo de vida, a mim me parece que nos sobra pouco espaço para coisas naturais.

Não acho que a gente deva voltar para a selva, vestir pele de bichos que acabamos de matar para nos defender, ou comer carne crua, não penso que se deva dormir na caverna em torno da fogueira. Mas de vez em quando parar para respirar fundo e analisar se é aquilo mesmo que queremos para nós e nossos filhos até o fim da vida, isso pode valer a pena e produzir alguma coisa, ainda que diminuta, transformação.

Nós, esses contemporâneos, temos ao lado dos líderes bem-intencionados - os que escutam sua gente e buscam atender as suas necessidades - aqueles que visam o interesse próprio, fortuna e poder sempre maiores. Desânimo e desalento se instalam: expressões como cansei, não adianta mesmo, ocupam grande espaço em nosso vocabulário.

Não acho que tudo tenha piorado. Nunca fui saudosista. Prefiro a comunicação imediata pela internet a cartas que levavam meses. Gosto mais de trabalhar no computador do que de usar a velha máquina de escrever (que linha lá seu charme). Nossa qualidade de vida melhorou em muitas coisas, mas - em muitas partes deste mundo - saúde, estradas, moradia, saneamento, universidades e escolas estão cada vez mais deterioradas, e uma parcela vasta da humanidade ainda vive em nível de miséria.

São as contradições inacreditáveis de um sistema onde cosmólogos investigam espaços insuspeitados, a cada dia trazendo revelações intrigantes que remetem a mais pesquisas, mas no qual ainda sofre e morre gente nos corredores de hospitais sobrecarregados, milhões de crianças morrem de fome, outros milhões nunca chegam à escola, ou brincam diante de barracos com barro que não é terra e água, mas água e esgoto.

Enquanto isso existir, seja onde for, somos grandes devedores de toda uma vasta fatia de desvalidos. 

(...)

Nós, homens e mulheres de hoje, temos muito a decifrar nessa nebulosa de desafios que nos envolve. De conflito em conflito, de falha em falha, mas aprendendo que ter esperança é trabalhar por ela. Esse é o nosso principal ofício. (Não o mais fácil.)


Nós, os contemporâneos, por Lya Luft - Trecho retirado do livro "A riqueza do mundo".

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